domingo, 23 de agosto de 2009

Rádio Picareta ...


"(...) os estores de uma janela da casa de barras azuis fortes que ficava em frente à Sociedade subiram enérgicos e, do outro lado, assomou-se uma cabeça de cabeleira grande e despenteada e barbas compridas mal cuidadas. Um homem de olhar esgazeado fitou-as sem as ver, enquanto continuava a difundir no microfone da aparelhagem a notícia escutada na Rádio Clube Almocreve.
- Como é que sabes Afonso? – gritou Delmira na direcção do locutor amalucado.
- Alô Vale Seco. Rádio Picareta está no ar. Quem gosta vai delirar, quem não gosta vai escutar:
Um crime foi cometido
Com uma vítima a lamentar,
O criminoso foi detido
E à prisão ele irá parar!
- Quem é que te disse Afonso?
- Alô Vale Seco. Rádio Picareta está no ar. Quem gosta vai delirar, quem não gosta vai escutar:
Um crime foi cometido
Com uma vítima a lamentar,
O criminoso foi detido
E à prisão ele irá parar!
- Quem é que te contou?
- Alô Vale Seco. Rádio Picareta está no ar. Quem gosta vai delirar, quem não gosta vai escutar:
Um crime foi cometido
Com uma vítima a lamentar,
O criminoso foi detido
E à prisão ele irá parar!
- Não se meta com ele prima Delmira, não se faça ele para aí de parvo! Com aquelas pessoas assim, quanto menos conversa melhor. No outro dia armou-se em engraçado com a vizinha Joaquina Corneta. Se não fosse olhando ao Celestino Picareta e à Hilda, ela tinha-lhe dado com um pau pelos cornos.
- Estou já calada. Deus Nosso Senhor nos livre disso.
- Mas então sabe o que é que ele fez!?
A mulher mais baixa e magra, esforçando-se por desviar o olhar da janela ocupada pelo homem dos cabelos despenteados, abanou timidamente a cabeça e preparou-se para a revelação.
- A mulher vinha da loja do Zé Silvestre, ele viu-a, meteu-se atrás dela com a coisinha da banda de fora das calças e … foi uma vergonha!
- Mas veja lá para onde lhe dá a doidice!?
- É verdade prima Delmira. Temos que ter cuidado com estas pessoas! Sabe depois o que ele fez!? Veio para casa, ligou o aparelho e descompôs a mulher ao micro. (...)"


Criativos, Loucos ou génios, todas as povoações têm os seus ... Vale Seco não é excepção.

Afonso Picareta, homem "louco" com a fixação pelo universo da comunicação ... uma estação de rádio que dá vóz aos sentimentos de um homem cujo ID e o EGO se confundem por ausência de SUPER-EGO ...

Opinar sobre estas figuras "especiais" e partilhar as suas estórias, são o desafio que lanço neste novo post ...

domingo, 16 de agosto de 2009

Mudança de Alcunha ...


"Engoliu o último naco de pão e fitou com nostalgia o horizonte plano e verdejante. Já perdera a conta ao número de vezes que olhara em vão a estrada que vinha da aldeia e que continuava a estender-se solitária sobre a planície. Já tinham passado mais de duas horas desde a caçada à minhoca na estrumeira comunitária, e de Toino Bezerra nem sinal.
- Então Finezas! – gritou um rosto barbudo, esgueirando-se pela janela de uma 4L com chassis enferrujados.
- Vai pró cabrão que te fez, Beiçudo de merda! – murmurou baixinho, elevando a mão e devolvendo o cumprimento gestual.
Uma onda de raiva agitou-lhe o espírito brando e fê-lo cerrar os punhos por momentos. À memória chegaram-lhes, em tumultos dolorosos, fragmentos dispersos do dia em que deixou de ser Carlitos Dentuço para se tornar eternamente Finezas.
Era Verão e os dias abafados convidavam a rapaziada mais velha e destemida a beber umas cervejas e a fazer porcarias na Barragem da Desgraça e nos eucaliptais contíguos.
Naquela altura, o lago secava todos os anos entre os meses de Junho e Setembro, e a bacia era aproveitada para múltiplas actividades lúdicas. (…)
E foi numa dessas tardes de paródia contínua na bacia seca da Barragem da Desgraça, que Felizardo Beiçudo, o rapaz das barbas ralas, lábios salientes e revirados e porte altivo, propôs um desafiou irrecusável a Carlitos Dentuço. Apostou com ele, como não conseguia descer o paredão da barragem com a bicicleta de mudanças que lhe tinham oferecido pelos anos no último mês de Maio. O prémio, se conseguisse concretizar a fineza, seria um passeio pelo eucaliptal com Silvina Relaxada, situação negociada na véspera com a patrocinadora do galardão. (...)
No cimo do paredão, Carlitos Dentuço mostrava-se ao auditório. O rapaz da aposta e toda a sua trupe incentivavam-no a concretizar o feito. Uma rapariga loura de mini-saia escandalosa e sardas no rosto decorado com pinturas excessivas olhava-o com um sorriso amplo e convidativo, por entre um trago de cerveja e uma passa no cigarro de filtro inexistente.
A bicicleta resplandecia com os últimos raios de sol daquele dia de Verão abrasador. Cá em baixo, na bacia central da barragem, a plateia mais velha gritava pelo nome de Carlitos Dentuço, alternando o olhar incisivo sobre o paredão de cimento rugoso e as garrafas de cerveja com que procuravam combater o calor e animar a alma.
Sentando-se com agilidade sobre o selim de cabedal verdadeiro, o rapaz da aposta olhava com altivez o auditório eufórico, exibindo com graciosidade a dentição frontal saliente.
- Desce! Desce! Desce! Desce!
As palavras da plateia em êxtase penetravam-lhe nos ouvidos deslumbrados e, no âmago, elevava-se um sentimento sublime. De entre todos os rostos, um havia que mais o cativava no seio da multidão jovial. A rapariga loura das sardas graciosas em volta do nariz arrebitado contribuía, com a sua voz esganiçada, para embelezar o coro imenso que o incentivava a descer. Na mente, por entre receios e esperanças desfilava graciosa a imagem idealizada do passeio no eucaliptal.
Elevando os braços para a assistência pela última vez, e fixando o rosto quase embriagado de Silvina Relaxada, segurou-se aos punhos da bicicleta e mergulhou na imensa rampa de cimento rugoso. O veículo galgou veloz a descida vertiginosa, (…)"


Alcunhas - muitas vezes mais fortes do que os nomes de registo. Uma tradição universal, mas que no meio rural adquire uma outra dimensão social ...
Operação Dominó respeita essa tradição. Faustina Repolho, Toino Bezerra, Finezas, Maria Perneta, Domingas Calhorda, João das Putas, etc.. são algumas das personagens com as quais nos cruzaremos se deambularmos pelos trilhos da operação dominó ...

Qual a justificação para o peso da alcunha na designação das pessoas???
Convido os leitores a reflectir sobre o assunto, comentando o post e partilhando estórias de alcunhas ...

domingo, 9 de agosto de 2009

Um Dia de Pesca ...

"Aldeia de Vale Seco, 9 de Janeiro de 2006.

- Finezas! Cava aqui depressa! Está aqui uma grande a querer fugir.
O sacho de gume aguçado penetrou com violência na terra fresca e lamacenta, e pôs cobro à fuga desesperada da minhoca encarniçada e escorregadia.
Um braço arregaçado até ao cotovelo, exibindo uma tatuagem absurdamente canhestra, desceu sobre o monte de estrume arrancado à terra, e uma mão rugosa, com gestos ágeis e treinados, revolveu os excrementos curtidos e caçou a pobre minhoca em fuga inútil.
- Anda cá magana! Tu vais servir para apanhar, pelo menos, meia dúzia de achigãs de quilo.
- Deixa-te de pantominices e apanha as minhocas. Quero chegar hoje à barragem.
Mais umas quantas sachadas na terra lamacenta e muitas minhocas grossas e lustrosas vieram à superfície. Os braços das tatuagens absurdas moveram-se agilmente no estrume húmido e fedorento, e a lata de salsichas, que servia de recipiente para o isco, esgotou a sua capacidade.
- Já chegam.
- Eu vou à Sociedade buscar umas minis, e tu vê lá se consegues arranjar uma bucha na casa dos teus velhotes.
(…)"


Uma pescaria canhestra em meio rural é o ponto de partida para a trama. O que irá suceder nessa ida à barragem??? Desafio os comentadores a engendrar soluções possíveis ... bons comentários ...