(...)
"Uns metros mais atrás, Filipe Antunes, o formador de Linguagem e Comunicação, dividia a atenção entre a conversa do grupo que seguia na frente e as reclamações do formando do olho branco, que nesta manhã repetia a postura inquietantemente perturbadora das últimas semanas.
- Um gajo deixa-se agarrar pelo cavalo e está fodido para o resto da vida. É sem hipótese. Mais dia, menos dia, e volta lá sempre.
O corpo esguio e vacilante de Mário Gomes caminhava paralelo ao do formador pelo carreiro de terra batida que encurtava a distância para o destino pretendido.
- A prisão foi outra foda! Um gajo cai lá dentro e nunca mais volta a ser o mesmo gajo. Quando sai trás um carimbo. Ninguém lhe dá importância. Todos fogem dele, como se tivesse alguma doença pegajosa.
- Quanto tempo esteve preso?
- Cinco anos que pareceram uma vida. Cada dia passado do lado de lá dos muros equivale a um ano de torturas cá fora. Um gajo sente-se … encurralado, controlado, e depois, desesperado pela falta do cavalo. Um gajo lá dentro faz qualquer coisa para conseguir a dose.
Mantendo uma postura assertiva mas sem demonstrar interesse excessivo pelo discurso melodramático do ex-recluso a ressacar, Filipe atrasou propositadamente o passo, de forma a manter os desabafos longe do entendimento dos restantes membros do grupo.
- Até o sabonete eu passei a apanhar para conseguir a dose.
Um acesso de raiva súbita, fê-lo cerrar os punhos e cravar as unhas nas palmas das mãos.
- Foda-se! Que merda de vida!
(…)
As mãos de Mário continuavam a tremer perturbadoramente e os olhos teimavam em não se conseguir fixar em ponto algum existente no meio circundante. Filipe olhava-o com aflição ascendente. O grupo que seguia imediatamente à frente cessou a marcha e fixou-se por momentos na estranha agitação do homem do olho ausente.
- Aquele sujeito já está outra vez do mesmo jeito.
- Aquilo deve ser doença.
- Tem jeitos de gripe. O homem treme por tudo quanto é lado e alaga-se em água.
- Não, mestre Toino! Aquilo ali é coisa pior! Eu conheci-o quando ele trabalhava no Bataclã do meu amigo Perna-Curta.
Por momentos as observações ocasionais cessaram e as atenções centraram-se nas palavras de João Balelas.
- Era ele quem arranjava as gajas. Cá para mim ele não devia dar emprego a nenhuma sem antes lhes testar os atributos.
- Estou a perceber! O sujeito deve ter apanhado uma dessas doenças que andam por aí.
- O gajo deve ter sida.
- Ou caliquera!
- Seja uma coisa ou outra, o melhor é a gente não se arrimar muito ao sujeito, não nos pegue ele aquela malazenga."
- Um gajo deixa-se agarrar pelo cavalo e está fodido para o resto da vida. É sem hipótese. Mais dia, menos dia, e volta lá sempre.
O corpo esguio e vacilante de Mário Gomes caminhava paralelo ao do formador pelo carreiro de terra batida que encurtava a distância para o destino pretendido.
- A prisão foi outra foda! Um gajo cai lá dentro e nunca mais volta a ser o mesmo gajo. Quando sai trás um carimbo. Ninguém lhe dá importância. Todos fogem dele, como se tivesse alguma doença pegajosa.
- Quanto tempo esteve preso?
- Cinco anos que pareceram uma vida. Cada dia passado do lado de lá dos muros equivale a um ano de torturas cá fora. Um gajo sente-se … encurralado, controlado, e depois, desesperado pela falta do cavalo. Um gajo lá dentro faz qualquer coisa para conseguir a dose.
Mantendo uma postura assertiva mas sem demonstrar interesse excessivo pelo discurso melodramático do ex-recluso a ressacar, Filipe atrasou propositadamente o passo, de forma a manter os desabafos longe do entendimento dos restantes membros do grupo.
- Até o sabonete eu passei a apanhar para conseguir a dose.
Um acesso de raiva súbita, fê-lo cerrar os punhos e cravar as unhas nas palmas das mãos.
- Foda-se! Que merda de vida!
(…)
As mãos de Mário continuavam a tremer perturbadoramente e os olhos teimavam em não se conseguir fixar em ponto algum existente no meio circundante. Filipe olhava-o com aflição ascendente. O grupo que seguia imediatamente à frente cessou a marcha e fixou-se por momentos na estranha agitação do homem do olho ausente.
- Aquele sujeito já está outra vez do mesmo jeito.
- Aquilo deve ser doença.
- Tem jeitos de gripe. O homem treme por tudo quanto é lado e alaga-se em água.
- Não, mestre Toino! Aquilo ali é coisa pior! Eu conheci-o quando ele trabalhava no Bataclã do meu amigo Perna-Curta.
Por momentos as observações ocasionais cessaram e as atenções centraram-se nas palavras de João Balelas.
- Era ele quem arranjava as gajas. Cá para mim ele não devia dar emprego a nenhuma sem antes lhes testar os atributos.
- Estou a perceber! O sujeito deve ter apanhado uma dessas doenças que andam por aí.
- O gajo deve ter sida.
- Ou caliquera!
- Seja uma coisa ou outra, o melhor é a gente não se arrimar muito ao sujeito, não nos pegue ele aquela malazenga."
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Personagens marcadas pelas vicissitudes da vida adquirem uma linguagem rude a roçar o ofensivo. A trama «Operação Dominó» está povoada de personagens "cruas", com vivencias fortes. Ex reclusos, prostitutas, toxicodependentes, proxenetas e traficantes são algumas das peças da Operação.
O desafio que deixo para este post é a uma reflexão sobre a utilização destas personagens estereotipadas na literatura. Positivo? Negativo? Porquê?