domingo, 16 de agosto de 2009

Mudança de Alcunha ...


"Engoliu o último naco de pão e fitou com nostalgia o horizonte plano e verdejante. Já perdera a conta ao número de vezes que olhara em vão a estrada que vinha da aldeia e que continuava a estender-se solitária sobre a planície. Já tinham passado mais de duas horas desde a caçada à minhoca na estrumeira comunitária, e de Toino Bezerra nem sinal.
- Então Finezas! – gritou um rosto barbudo, esgueirando-se pela janela de uma 4L com chassis enferrujados.
- Vai pró cabrão que te fez, Beiçudo de merda! – murmurou baixinho, elevando a mão e devolvendo o cumprimento gestual.
Uma onda de raiva agitou-lhe o espírito brando e fê-lo cerrar os punhos por momentos. À memória chegaram-lhes, em tumultos dolorosos, fragmentos dispersos do dia em que deixou de ser Carlitos Dentuço para se tornar eternamente Finezas.
Era Verão e os dias abafados convidavam a rapaziada mais velha e destemida a beber umas cervejas e a fazer porcarias na Barragem da Desgraça e nos eucaliptais contíguos.
Naquela altura, o lago secava todos os anos entre os meses de Junho e Setembro, e a bacia era aproveitada para múltiplas actividades lúdicas. (…)
E foi numa dessas tardes de paródia contínua na bacia seca da Barragem da Desgraça, que Felizardo Beiçudo, o rapaz das barbas ralas, lábios salientes e revirados e porte altivo, propôs um desafiou irrecusável a Carlitos Dentuço. Apostou com ele, como não conseguia descer o paredão da barragem com a bicicleta de mudanças que lhe tinham oferecido pelos anos no último mês de Maio. O prémio, se conseguisse concretizar a fineza, seria um passeio pelo eucaliptal com Silvina Relaxada, situação negociada na véspera com a patrocinadora do galardão. (...)
No cimo do paredão, Carlitos Dentuço mostrava-se ao auditório. O rapaz da aposta e toda a sua trupe incentivavam-no a concretizar o feito. Uma rapariga loura de mini-saia escandalosa e sardas no rosto decorado com pinturas excessivas olhava-o com um sorriso amplo e convidativo, por entre um trago de cerveja e uma passa no cigarro de filtro inexistente.
A bicicleta resplandecia com os últimos raios de sol daquele dia de Verão abrasador. Cá em baixo, na bacia central da barragem, a plateia mais velha gritava pelo nome de Carlitos Dentuço, alternando o olhar incisivo sobre o paredão de cimento rugoso e as garrafas de cerveja com que procuravam combater o calor e animar a alma.
Sentando-se com agilidade sobre o selim de cabedal verdadeiro, o rapaz da aposta olhava com altivez o auditório eufórico, exibindo com graciosidade a dentição frontal saliente.
- Desce! Desce! Desce! Desce!
As palavras da plateia em êxtase penetravam-lhe nos ouvidos deslumbrados e, no âmago, elevava-se um sentimento sublime. De entre todos os rostos, um havia que mais o cativava no seio da multidão jovial. A rapariga loura das sardas graciosas em volta do nariz arrebitado contribuía, com a sua voz esganiçada, para embelezar o coro imenso que o incentivava a descer. Na mente, por entre receios e esperanças desfilava graciosa a imagem idealizada do passeio no eucaliptal.
Elevando os braços para a assistência pela última vez, e fixando o rosto quase embriagado de Silvina Relaxada, segurou-se aos punhos da bicicleta e mergulhou na imensa rampa de cimento rugoso. O veículo galgou veloz a descida vertiginosa, (…)"


Alcunhas - muitas vezes mais fortes do que os nomes de registo. Uma tradição universal, mas que no meio rural adquire uma outra dimensão social ...
Operação Dominó respeita essa tradição. Faustina Repolho, Toino Bezerra, Finezas, Maria Perneta, Domingas Calhorda, João das Putas, etc.. são algumas das personagens com as quais nos cruzaremos se deambularmos pelos trilhos da operação dominó ...

Qual a justificação para o peso da alcunha na designação das pessoas???
Convido os leitores a reflectir sobre o assunto, comentando o post e partilhando estórias de alcunhas ...

3 comentários:

  1. Não sei como é em Portugal,mas no Brasil as alcunhas são muito comuns nas áreas rurais dos estados mais pobres,funcionando quase como sobrenomes, já que as homonímias são freqüentes. A ignorância,os limitados horizontes, o peso da tradição fazem com que os nomes se repitam nas famílias.No Maranhão,um dos nossos estados mais atrasados, refém de uma das oligarquis mais poderosas do Brasil,por exemplo, são incontáveis os "josé ribamar" que acabam acrescentando uma alcunha para se diferenciarem.E essas alcunhas trazem sempre a expressão de uma característica marcante de quem as carrega:pode ser um defeito físico, um traço de feiúra, ou um acontecimento (geralmente tragicômico) que lhes marcou a vida.
    Assim, não há como esquecer o que se gostaria de esquecer: é quase um estigma que a pessoa carrega.

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  2. O Alentejo é povoado de alcunhas ... mas existe uma localidade lá bem nas profundezas do imenso sul, designada Amareleja, onde nenhum habitante ou visitante fica ileso a uma alcunha. Conta-se que um dia um caixeiro viajante que por ali passava, conhecedor da tradição e pouco interessado em ganhar uma nova designação, quando chegou à entrada da povoação comentou para os naturais da localidade:
    - A mim não me aonde por alcunha alguma, pois eu não entro na terra, vou de roda (vou à volta).
    resultado, o pobre viajante afinal não escapou e ficou o "Vai de Roda".

    Em tempos trabalhei alguns messes nesta localidade (certamente devo constar nos registos locais das alcunhas) e um dia estava a caminhar para o carro e atrás de mim vinha um grupo de crianças saídas da escola primária (seis, sete anos) e uma delas comentava para outra: o Manel "Chibo" hoje não veio ...
    de pequenino é que se começa a preservar as tradições ...

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  3. Luis, acho hilariante essa coisa das alcunhas! Boa sorte para o lançamento do livro. Estás de parabens pela coragem e esforço! Joao Balroa

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