segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Desabafos Marginais



(...)

"Uns metros mais atrás, Filipe Antunes, o formador de Linguagem e Comunicação, dividia a atenção entre a conversa do grupo que seguia na frente e as reclamações do formando do olho branco, que nesta manhã repetia a postura inquietantemente perturbadora das últimas semanas.
- Um gajo deixa-se agarrar pelo cavalo e está fodido para o resto da vida. É sem hipótese. Mais dia, menos dia, e volta lá sempre.
O corpo esguio e vacilante de Mário Gomes caminhava paralelo ao do formador pelo carreiro de terra batida que encurtava a distância para o destino pretendido.
- A prisão foi outra foda! Um gajo cai lá dentro e nunca mais volta a ser o mesmo gajo. Quando sai trás um carimbo. Ninguém lhe dá importância. Todos fogem dele, como se tivesse alguma doença pegajosa.
- Quanto tempo esteve preso?
- Cinco anos que pareceram uma vida. Cada dia passado do lado de lá dos muros equivale a um ano de torturas cá fora. Um gajo sente-se … encurralado, controlado, e depois, desesperado pela falta do cavalo. Um gajo lá dentro faz qualquer coisa para conseguir a dose.
Mantendo uma postura assertiva mas sem demonstrar interesse excessivo pelo discurso melodramático do ex-recluso a ressacar, Filipe atrasou propositadamente o passo, de forma a manter os desabafos longe do entendimento dos restantes membros do grupo.
- Até o sabonete eu passei a apanhar para conseguir a dose.
Um acesso de raiva súbita, fê-lo cerrar os punhos e cravar as unhas nas palmas das mãos.
- Foda-se! Que merda de vida!
(…)

As mãos de Mário continuavam a tremer perturbadoramente e os olhos teimavam em não se conseguir fixar em ponto algum existente no meio circundante. Filipe olhava-o com aflição ascendente. O grupo que seguia imediatamente à frente cessou a marcha e fixou-se por momentos na estranha agitação do homem do olho ausente.
- Aquele sujeito já está outra vez do mesmo jeito.
- Aquilo deve ser doença.
- Tem jeitos de gripe. O homem treme por tudo quanto é lado e alaga-se em água.
- Não, mestre Toino! Aquilo ali é coisa pior! Eu conheci-o quando ele trabalhava no Bataclã do meu amigo Perna-Curta.
Por momentos as observações ocasionais cessaram e as atenções centraram-se nas palavras de João Balelas.
- Era ele quem arranjava as gajas. Cá para mim ele não devia dar emprego a nenhuma sem antes lhes testar os atributos.
- Estou a perceber! O sujeito deve ter apanhado uma dessas doenças que andam por aí.
- O gajo deve ter sida.
- Ou caliquera!
- Seja uma coisa ou outra, o melhor é a gente não se arrimar muito ao sujeito, não nos pegue ele aquela malazenga."

(...)

Personagens marcadas pelas vicissitudes da vida adquirem uma linguagem rude a roçar o ofensivo. A trama «Operação Dominó» está povoada de personagens "cruas", com vivencias fortes. Ex reclusos, prostitutas, toxicodependentes, proxenetas e traficantes são algumas das peças da Operação.

O desafio que deixo para este post é a uma reflexão sobre a utilização destas personagens estereotipadas na literatura. Positivo? Negativo? Porquê?

1 comentário:

  1. Ao prefaciar uma das primeiras obras de Jorge Amado, Suor, Graciliano Ramos, um dos grandes escritores brasileiros, autor de Vidas Secas, que virou um clássico do cinema, ao falar dos personagens da obra de Amado, a eles se referia como "seres estragados". Falava do povo excluído da sociedade, marginalizado por ela,os marginais no duplo sentido.

    Essa opção de Jorge Amado pelos personagens marginais valeu-lhe uma crítica preconceituosa que o classificou de ""escritor de putas e vagabundos", epíteto que ele considerou um elogio, São personagens que se recusam a continuar excluídos da literatura ou vistos de cima com um olhar condescendente. Conquistam seu próprio espaço e avançam para o primeiro plano e dominam toda a cena .

    Se o escritor é um antropólogo da linguagem, por que não usar esses personagens, que estão no tecido social, deixando-os aflorar

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